||| A questão europeia.
Recentemente, escutei (durante mais de uma hora) um discurso sobre o funcionamento da União, sobre a formação de maiorias, o poder franco-alemão, toda a geringonça que transforma em sujeito disfuncional qualquer especialista em direito comunitário. Coisas da diplomacia. Tremi de consideração e estou a ser sincero. Admito que seja um jogo (e um desafio) interessante de que não conheço as regras; admito, também, que as regras sejam dissimuladas. Quando a conversa segue por aí, procuro eslarecimentos mas sei que a minha opinião é fraca, será sempre pouco informada.
O que me preocupa, agora, na Europa, na União, seja o que for, é a tendência geral para a uniformização, tanto das leis como das leituras do passado. Sei que vou estar no comboio que partiu atrasado. A culpa não é só minha. É da minha Europa do sul, dos nossos hábitos incivilizados, da alimentação, do hábito de comer peixe, da nostalgia da sesta, da sombra dos jardins, da saudade que -- todo o ano -- tenho da praia, do queijo de São Jorge, da velocidade a que conduzo o carro. E é da preguiça, também. Às vezes parece-me congénita, mas só me culpo a mim. Vivi lá fora, sei que há diferenças; mas aquele discurso sobre «o modelo finlandês» é-me cada vez mais estranho, nunca vi que os meus conhecidos de Helsínquia ou de Rovaniemi ou de Turku fossem especialmente felizes ou, para ser sincero, mais felizes do que nós. Mesmo os hábitos de leitura na Islândia; invejo-os para nós, mas sei que anoitece cedo em Reykjavík (as livrarias são a última coisa a fechar no centro da cidade) e que, há uns anos, só se podia beber álcool ao fim-de-semana. Nós habituámo-nos a contar anedotas sobre o Salazar, a contar anedotas sobre o Samora, a rir das tragédias. Às vezes chego atrasado a uma reunião e peço desculpa, mas não devia. Não devia chegar atrasado, não devia sair da sala para fumar, não devia estar a meio da reunião a imaginar a cataplana de bacalhau. Não devia deixar para o dia seguinte. Não devia estar o ano inteiro à espera da praia. O discurso dos modernos é confrangedor, de qualquer modo, quando nos imaginam -- a todos -- a seguir o modelo finlandês. O milagre irlandês deixa-me indiferente, depois de ver que Dublin, a minha Dublin, se tornou irreconhecível, uma espécie de pesadelo de ficção científica, britanizada. Irrita-me a falta de cuidado, a falta de trabalho sério, a falta de respeito pelas leis, a facilidade com que se desculpa a preguiça. Mas sou preguiçoso, também. Tenho uma carga da velha Europa do Sul por todo o lado. Participei em muitas reuniões de uma multinacional para quem trabalhei durante década e meia. Eles eram ricos, poderosos, tomavam decisões, marcavam reuniões para o pequeno-almoço, às sete da manhã. Nós íamos, mas não estávamos felizes.
Acho que não sei bem o que quero da União. Acho que não sabemos bem o que queremos da União. Não quero o manual franco-alemão de História da Europa. Quero continuar a contar anedotas sobre Napoleão. Irrita-me que eles digam o que eu devo comer, em nome da segurança alimentar. No fundo, gosto de imperiais tomadas ao sol de Maio, que nunca mais vem. Descobri que tenho o meu termostato regulado pela Costa Rica. Sou pontual, mas irrita-me a ideologia da pontualidade. Trabalho muito, mas irrita-me a conversa sobre «trabalho e mais nada». Respeito as leis, mas irritam-me os arrumadinhos, conformadinhos, irrepreensíveis. De cada vez que leio o livro de David Landes (A Riqueza e a Pobreza das Nações), nunca sei bem onde fica a minha história. Sou uma coisa (sou «finlandês», às vezes), mas não acho que seja a única maneira de viver. Acho que a Europa, esta coisa, conforme está, ou nos transformará em todos iguais, nenhum diferente, ou, um dia, explodirá. Imagino umas vagas pessoas decidindo como vamos ser, como vamos vestir-nos, o que vamos ler. E imagino que, um dia, nada lhes escapará. Não gosto de teorias da conspiração (nem de astrologia, de tarot, de profecias de Nostradamus, de esoterismo), mas vejo os muros à nossa volta. Devíamos ser assim, ser saudáveis, fazer pilates, participar, perseguir os que fumam pela rua fora, mandar prender quem estaciona no passeio, criticar quem conta anedotas machistas, sexistas, racistas, sobre judeus ou surdos-mudos. Um dia vão mandar-nos deitar às dez da noite. E nós vamos. Mas uma parte de nós não vai. Não há-de ir.