05 setembro, 2007

||| Não gosto de literatura. Eu sabia. 1.
A Carla acha que eu não gosto de literatura. Completamente off the record (ou seja, só entre nós) e penso que o Eduardo não leva a mal a inconfidência, ontem ao final da manhã, numa troca de mails, eu disse-lhe: «Vamos ser trucidados. Olha o Proust...» Confesso que nunca tinha lido a Recherche até à tradução de Pedro Tamen. [Também escrevi, noutra altura: «Está a acontecer-me com a Recherche, que eu nunca tinha lido (saiu agora a tradução de Pedro Tamen, na Relógio d'Água). À medida que vou lendo descubro uma coisa notável: algumas pessoas que falaram de Proust estão inteiramente certas naquilo que disseram; mas centenas delas nunca tinham lido Proust, afinal — citavam Proust, a importância de Proust, a obra-prima. Mas não tinham lido. Uma obra-prima, nessas circunstâncias, é inquestionável, tal como o “acto de leitura”, uma espécie de iniciação; fala-se dela e milhares de pessoas dizem: “Claro que ele já leu Proust.”»]
O que significa a lista? Não sei. Mas aqueles livros não me suscitaram muitas interrogações. Lolita é uma construção engenhosa, uma obra-prima; Ulysses é outra construção prodigiosa, custou-me a ler, sempre afectado pelo facto de ter lido primeiro a correspondência entre Joyce e Nora (e a biografia de Nora, de Brenda Maddox), e sempre perturbado pelo facto de ter feito, em Dublin, todo o percurso do livro; Grande Sertão Veredas é o segundo nascimento da literatura brasileira. Mas, na verdade, não mudaram nada de mim e não mudaram nada do que eu pensava da literatura. Mudou mais, sim, e terrivelmente, o Tristram Shandy, de Sterne (tradução fantástica de Manuel Portela), porque eu não sabia que tudo aquilo já tinha sido escrito há muito tempo e era o mais moderno que se podia fazer antes de aparecerem acrobatas do romance (tirando Machado de Assis, que usou muito bem os truques); e mudou muito mais The Long Goodbye/O Imenso Adeus, de Raymond Chandler (até comprei o áudio-livro lido por Elliott Gould), que tem um arranque único («The first time I laid eyes on Terry Lennox he was drunk in a Rolls-Royce Silver Wraith outside the terrace of The Dancers...», etc., etc). Há outros livros que são apenas sobrevalorizados. A Náusea é um aborrecimento, O Amante de Lady Chatterley é um expoente da moral de tia velha e supostamente devassa. Diante deles, acho uma pena que Orgulho e Preconceito não seja mais lido. São simpatias, também. Mas a lista não tem a ver com antipatias; essa seria longa e certamente injusta. O Fausto, de Goethe, é quase uma obra absoluta, fortíssima, total; mas uma encenação, que vi em tempos, desiludiu-me e amedrontou-me. São acasos. E são escolhas.
Uma lista de livros que não significaram nada? Como diz o Manuel, era fácil. Por obrigação, leio bastantes desses ao longo do ano. Mas ataquemos o coração da literatura pelo outro lado, o das explosões que deixa na nossa vida. Por exemplo, Memórias de Adriano; ninguém da minha geração universitária era bem visto se não o tivesse lido, e eu li-o, li Yourcenar em doses fatais; passados estes anos, folheei a velha edição da Ulisseia (capa de linho, grafismo de João Rodrigues) e procuro aquilo que me agradou na época: umas frases, um excesso, uma novidade, a figura de Adriano; mas passou, passou há muito tempo, não deixou grande coisa, não mudou nada de mim.
[FJV]

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