31 maio, 2007

||| PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.









(Os sonhos cheiram melhor do que a realidade.)


O meu pai é um homem de paixões. Durante alguns anos dedicou-se à fotografia e ao cinema. Comprou uma câmara de filmar, Super 8, que levava para toda a parte. Foi por causa dele e do seu entusiasmo, e por causa também daquela velha câmara, hoje minha, que me tornei documentarista. Lembro-me, eu era adolescente, em Lisboa, de Dário armar um pequeno écran na sala de visitas, e de projectar slides, ou filmes, sobre Lourenço Marques ou a Ilha de Moçambique. Num deles estou eu, com pouco mais de um ano, numa piscina, dentro de uma bóia com o formato de um pato, a bater na água com ambas as mãos. Ao fundo, o imenso mar anil. Noutro filme aparece a minha mãe com uma cana de pesca nas mãos. Dário via as imagens em silêncio, saboreando um Martíni. No fim, suspirava:
– Ah, Moçambique! Foram anos felizes. Às vezes sonho com aquele tempo. Depois acordo e ainda sinto nos lençóis o cheiro de África. Quem não sabe o que é o cheiro de África não sabe a que cheira a vida!...
Quando o avião aterrou em Luanda e abriram as portas, parei um instante no cimo das escadas e enchi os pulmões de ar. Queria sentir o cheiro de África. Mandume abanou a cabeça, infeliz:
– Merda de calor!
Enfureci-me:
– Ainda nem pisámos em terra e tu já protestas. Não sabes apreciar as coisas boas?
– Que coisas boas?
– Sei lá, o cheiro, por exemplo. O cheiro de África!
Mandume olhou-me, perplexo:
– O cheiro de África?! Cheira a xixi, caramba!...
Fiquei calada. Cheirava mesmo.

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A verdade é que não sei ainda se a amo ou se a odeio. Falo de Luanda. A vivenda do general N'Gola fica no centro de um pequeno jardim tropical, com palmeiras, bananeiras, um lago redondo com repuxo e peixes vermelhos. Havia diversas mesas de ferro dispostas ao redor de uma piscina muito bonita. As pessoas conversavam tranquilamente. Bebiam e comiam. À mesa em que nos sentaram estava um jovem empresário – "importo vinhos e bebidas espirituosas", disse-me, ao apresentar-se – acompanhado pela mulher, uma rapariga gordinha, com um rosto perfeito, recém-formada em economia no Rio de Janeiro. Estava ainda um rapaz alto, de ombros largos, que me cumprimentou com alegre irreverência:
– Tia Laurentina, acertei?, a avó contou-me. Houve quem tivesse feito apostas sobre quantos filhos do avô Faustino, filhos desconhecidos, claro, iriam aparecer no funeral. Apareceram dois, você e um militar, lá do Sul...
Devo ter corado. Ele percebeu o meu desconforto:
– O que é isso? Não se zangue. Você faz parte da família. Lamento que não tenha conhecido o velho em vida. Ele era uma pessoa extraordinária. Estamos todos felizes por você ter aparecido. Eu, em particular, que ganhei uma tia tão bonita. Ainda não me apresentei? Perdão, chamo-me Bartolomeu, Bartolomeu Falcato, e sou o filho mais velho da Cuca...
Mandume interrompeu-o:
– Quantos filhos teve o seu avô?
Bartolomeu riu-se. Riram-se com ele o empresário e a mulher.
– Segundo o avô dizia, 18. Sete mulheres e 18 filhos.
– Era um homem africano – o empresário piscou-me o olho cúmplice. – Aqui em África ainda sabemos fazer filhos, não é como vocês lá na Europa. Quem está a salvar a Europa da implosão demográfica são os imigrantes africanos. Os europeus deixaram de fazer filhos. Têm, presumo eu, outras coisas com que se ocupar...
– Quantos filhos tem você?
– Eu?! Só um, mas eu ainda sou muito novo...
– Muito novo? Tens 33, meu camba. Aqui na terra já és cota. – Bartolomeu dizia isto às gargalhadas. – Lembra-te que a esperança de vida em Angola é de 42 anos. Já uma criança que nasça em Portugal pode viver 77 anos. Um angolano de 33 anos equivale a um português de 68. A tia tem razão, enquanto africano tu és uma fraude!
– E você, quantos filhos tem?
– Nenhum, tia. Sou uma fraude completa. Para começar, tenho esta cor, que não me dá credibilidade nenhuma enquanto africano. O mês passado fui a Durban a um encontro de escritores. Havia escritores de vários países da chamada África Negra, além de um americano, um indiano e uma jovem indonésia, por sinal linda de morrer. Alguns escritores não esconderam o espanto quando me apresentei, "Bartolomeu Falcato, angolano". Dois quiseram saber se viajava com passaporte português. A terceira pessoa que me fez essa pergunta, a jovem indonésia, teve pouca sorte. Explodi. Disse-lhe que no meu país só os polícias de fronteira é que costumam pedir-me o passaporte. Ainda lhe perguntei se trabalhava para os serviços de emigração. Ganhei uma bela inimiga, claro. Quer ver o meu Bilhete de Identidade, tia? Leia aqui, onde diz raça, consegue ver? Está escrito branco. Já o meu irmão mais velho, ali naquela mesa, sim, esse, o escurinho, foi classificado como negro. Irmão do mesmo pai e da mesma mãe. Pelo menos da mesma mãe é de certeza...
– Como é então, Bartolomeu?! – Ralhou o jovem empresário. – Vamos lá a mostrar mais respeito pelos cotas!
Bartolomeu riu-se. Dir-se-ia que estávamos numa festa de aniversário, embora eu tenha surpreendido uma ou outra senhora a limpar com o lenço uma lágrima furtiva. Dona Anacleta, não. Presidia à maior das mesas, muito direita, muito digna, comandando as empregadas com a simples autoridade do olhar. Bartolomeu pousou a mão no meu braço:
– Soube que é documentarista...
– Sim, sobrinho, venho sendo.
– Então já temos mais alguma coisa em comum, além do parentesco. Eu trabalho para a Televisão. Aqui podemos dizer apenas a televisão. Só há uma. Tirei um curso de cinema em Cuba. Além disso, escrevo. Publiquei dois romances.
Mandume reparou na mão dele. Não disse nada. Bartolomeu continuou:
– Também soube que pretende realizar um documentário sobre esta viagem que faz.
– Como soube?
– Neste país tudo se sabe. Tenho uma proposta. Talvez lhe interesse...
– Só admito propostas honestas...
– Esta é honesta, tia. Gostaria de filmar contigo, vamos tratar-nos por tu, está bem? Gostaria de filmar contigo um documentário sobre a vida do velho Faustino. Um road movie. A minha ideia seria partir de Luanda, com um bom jipe, e parar em todas as cidades onde ele viveu: Benguela, Mossâmedes, Cape Town, Maputo, Quelimane e Ilha de Moçambique. Entrevistaríamos as pessoas que o conheceram, músicos que trabalharam com ele. O Hugh Masekela, por exemplo, sabias que o velho tocou com o grande Hugh Masekela?...
Eu não sabia. Escrevo estas notas no quarto onde estamos instalados, no hotel Panorama, um edifício elegante, erguido sobre as areias da ilha. Tem o mar à frente e o mar atrás. Através da janela vejo as luzes da cidade reflectidas no espelho preto da baía. À noite, vista daqui, Luanda parece uma metrópole imensa e desenvolvida. A escuridão oculta o lixo e o caos. Penso no meu pai. Quis saber o que achava Mandume acerca da proposta de Bartolomeu.
– Uma completa estupidez! – gritou-me. – A nossa ideia era apenas filmar o encontro com a tua família. Ficamos mais duas semanas, conforme o combinado, e depois regressamos a Portugal.
Tentei argumentar. Quanto mais penso no projecto do meu jovem sobrinho mais me entusiasmo. Disse-lhe que me parecia uma excelente ideia e que me faria bem. Ajudar-me-ia a descobrir o meu pai. E em Moçambique poderia procurar Alima, a minha mãe biológica.
Imagine-se – e se eu encontrar a minha mãe?
– Sim, se a encontrares, o que é que lhe dizes?! – Mandume irónico. – Olha mamã, sou a tua filha. A filha que tu pensaste que tinha morrido no parto...
Irritei-me. Gritei:
– Já estou farta de ti!
Mandume saiu do quarto furioso. Bateu com a porta.
Passa da 1h da manhã e ainda não regressou.

Capítulo 1, Parte I
||| Capítulo 1, Parte II


[FJV]

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