||| Gisberta, 2.
Meu caro Bruno: aí está um problema. A indignação de género é redutora e simples, nesse e noutros casos. Admito que o crime – o assassinato de Gisberta – foi cometido «contra» um transsexual, ou travesti, ou o que a linguagem admitir. Mas o crime está lá, independentemente do género; ou seja, não foi apenas cometido «contra» um transsexual, ou travesti. É legítimo que nos perguntemos, e devíamos perguntar-nos mais, sobre a atitude do tribunal, do MP e da turba, se em vez de Gisberta a vítima fosse «fulano de tal, gestor de uma empresa têxtil do Porto», «fulano de tal, professor de direito constitucional», «fulana de tal, empresária em Gaia» ou «fulano de tal, futebolista». Não conheço a lei; ou seja, não sei se a pena aplicada aos rapazes é correcta ou não do ponto de vista da Lei. Provavelmente, é. Provavelmente, a pena não podia ser maior. Ignoro. Mas o discurso usado no tribunal contemporiza com a curiosidade de ver «um homem com mamas, que se parecia com uma mulher», é fatal quando fala de «brincadeira de mau gosto» e, no fundo, vamos assistir à transformação dos treze menores em vítimas a recuperar em alguns meses (entre 11 e 13, segundo parece). O que está em causa, muito apropriadamente, é (além da pena aplicada) o discurso escandaloso que assenta na irrelevância da vítima (portanto, admitindo a questão do género, o que é gravíssimo, como se matar um travesti fosse mais «compreensível» do que matar a Miss Portugal) e na irresponsabilidade admitida dos criminosos (tratando-os como vítimas e não como autores materiais).
Está por fazer uma história actual da crueldade em Portugal (aí está um tema para ti, Bruno); violação de bebés, assassinato e tortura de crianças de três anos, violência sobre travestis, perseguição pública a homossexuais e a adúlteras (um célebre caso ocorrido nos arredores do Porto e que foi motivo de reportagens há uns anos), o que por aí vai. É necessário eliminar a justiça de género e evitar leis especiais. Basta cumprir a lei geral, mesmo se for necessário alterá-la para a tornar mais humana.
A Origem das Espécies
We have no more beginnings. {George Steiner}
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