15 janeiro, 2007

||| Ray.







Morreu a Ray Güde-Mertin. O que centenas de autores lhe devem, pelo mundo fora, não pode ser contabilizado. Mais do que agente literária, ela era também amiga de quase todos eles, distribuindo o seu afecto por Portugal, Brasil, Argentina, Uruguai ou na África de língua portuguesa, onde quer que estivesse um dos seus autores. Devo-lhe, por isso, muito -- pelo que fez pelos meus livros e pelo que fez pela minha vida. Acredito que muitos dos seus autores (Saramago, Agualusa, Verissimo, Lins, Zimler, Rosa Mendes, Scliar, Raduan Nassar, João Ubaldo, Tabajara, Lucho Sepúlveda, Mário de Carvalho, Aparaín, Lídia Jorge, Santiago Gamboa, tantos) podem dizer palavras semelhantes. Mas hoje é um dia daqueles.
Um dos seus últimos sonhos foi realizado, quando pôde começar a usar a sua casa do Ceará, dividindo-se entre a casinha do n.º 1 da Friedrichstrasse, em Bad Homburg (quartel-general da sua agência, quartel-general de todos nós), nos arredores de Frankfurt (a cuja universidade Goethe dava colaboração). O governo brasileiro concedeu-lhe recentemente a Ordem de Mérito Cultural -- ela conhecia o Brasil muito melhor do que a maioria dos seus autores brasileiros. A partir de agora não a encontraremos nos bares, botecos, restaurantes, salas de reuniões das feiras onde ela circulava como a nossa agente (Frankfurt, claro, e Londres, Paris, Rio, São Paulo, Buenos Aires, México...). Não poderemos rir com ela. Não irá alojar-se, de novo, no Tivoli Jardim ou no Hotel Eduardo VII, em Lisboa. Das últimas vezes jantámos comida argentina, fomos à Tasquinha da Adelaide. Há dois anos, no meio de uma minha infecção pulmonar, no Rio, organizou um «final de manhã» num apê de Ipanema, a dois passos da General Osório (com o Verissimo, o Pepetela, o Paulinho Lins, o Moacyr Scliar, o Zuenir ou o João Ubaldo) -- melhor do que o tratamento nos tubos e maquinarias do Albert Einstein foi aquele «final de manhã» em que o whisky de João Ubaldo passou para mim e, misteriosamente, me curou (creio que com vantagens). A casinha da Friedrichstrasse, a dois passos do casino histórico de Bad Homburg, deverá conservar sempre aquele ar de museu vivo da literatura de língua portuguesa e espanhola -- de que todos somos devedores -- com os retratos, os manuscritos, as recordações de viagens e, naturalmente, o pessoal da agência, instalada em baixo.
Há uns anos, jantando em Salvador (nessa noite era eu a cozinhar para a minha agente), depois de capirinhas na praia, ela decidiu, com o marido, comprar uma casa no norte do Ceará. Tinha acabado um dos seus tratamentos (sempre dolorosos) e sentiu que podia ser ainda mais feliz a sul do equador. A casa, nos arredores de Fortaleza, lá estará para guardar uma parte da Ray, sendo que outra ficará em Bad Homburg, e no coração dos «seus autores». Da nossa Ray. As despedidas não deviam ser assim, mas são.