31 outubro, 2006

||| Privacidade, a todo o custo.
Ontem, na Janela Indiscreta (Antena Um, à tarde), Pedro Rolo Duarte surpreendia-se com o tom, digamos, mais furioso, de José Pacheco Pereira referido aqui (e publicado também aqui). Ora, sendo zangado o tom de JPP (contra uma peça do Expresso e contra um editorial do Sol), gostava de insistir no facto de ele ter toda a razão. Primeiro começa-se com um tom «alegadamente político» (sim, o primeiro-ministro tem uma namorada); depois, a revelação assume o aspecto de «facto político» (que importância terá o facto de o primeiro-ministro namorar com uma jornalista?) e, finalmente, misturar-se-ão os dois planos num só: o político e o privado. Daí ao moralismo, ao inquérito cor-de-rosa, à trapalhada -- é um passo. Mário Soares vestiu a pele de moralista e beato (que lhe ficava tão mal) para criticar Sá Carneiro e Snu Abecassis em 1980, com a companhia do então O Diário comunista; lembram-se da crítica ao concubinato? Mais tarde, Sampaio foi «vigiado» por ser casado pela segunda vez. Mas o que está em causa não é o facto em si e sim a tentativa de estabelecer grilhetas morais para duas pessoas livres que vivem a sua vida conforme entendem e julgam que é melhor. Ah, o «interesse público»? Qual interesse público? Não vejo nenhum. Vislumbro o «interesse do público» e a vontade de a imprensa servir esse prato escaldante e ligeiramente picante, tal como na época foram servidas umas declarações abjectas de Santana Lopes sobre essa matéria.
Eu acho que, se alguém abre as portas da sua casa às revistas cor-de-rosa ou à «imprensa de referência», mostra a filharada e as molduras douradas, a cama e a mesa, o pijama e a correspondência particular -- está no seu direito, e há até uns vagos seres que vivem disso com aplauso do povo e lantejoulas na televisão. Mas se alguém decide reservar para a sua vida privada aquilo que é a sua vida estritamente privada, se alguém não está disposto a mostrar em público aquilo que é apenas seu, qualquer violação dessa intimidade é um crime -- quer isso aconteça nas páginas de um jornal, no colorido de uma revista ou até na reserva impiedosa de um blog. José Pacheco Pereira tem toda a razão. Não é crime dizer «o primeiro-ministro tem uma namorada»; mas não é um assunto de grande relevância jornalística e não será certamente honesto sugerir que as opiniões do primeiro-ministro estão sujeitas ao escrutínio «do casal» e que, como consequência, o casal estará sujeito ao escrutínio da imprensa e do povoléu. O povoléu não quer apenas sangue e escândalo; quer também escândalo onde não há, para que possa alimentar a sua inveja e a sua própria natureza. A privacidade é o maior dos bens no universo público.