||| Dia 19 de Abril, uma vela onde quer que seja.
Ainda não intervim no debate que corre animado pela blogosfera sobre a ideia, lançada pelo Nuno Guerreiro, de acender uma vela por cada vítima do pogrom de 1506. Quatro mil velas no Rossio, quatro mil velas na Lisboa que viu queimar, assassinar, perseguir. Eu preferia que se acendessem muito mais velas e não no Rossio, mas por todo o lado.
Também não quero intervir nesse debate (acompanhado de perto, com generosidade, pelo Lutz e pelo Rui). É, digamos, um debate que não me interessa. Explico porquê: discutir se o massacre dos judeus de Lisboa foi ténue, moderado ou pequenino em comparação com os campos nazis ou com a acção dos khmers, é uma coisa que me deixa envergonhado. Não tem discussão. A ignorância não se discute; ela sim, deixa-nos envergonhados.
Acender uma vela por cada uma das vítimas, ou acender uma vela por todas as vítimas do pogrom e dos assassínios cometidos na Lisboa de 1506, não significa senão isso: relembrar a matança da Páscoa de 1506 e as suas quatro mil vítimas. Lembrar. Não esquecer.
Não debaterei o significado da ida ao Rossio para acender uma vela, nem creio que isso tenha outro significado que não esse -- o de que a memória não pode ressuscitar os mortos, mas também não quer massacrar os vivos com a sua intromissão. Limita-se a ser isso: uma memória. Pessoalmente, assinalarei a data, assinalarei o facto e não entrarei em nenhum debate sobre o assunto. E também explico: o debate sobre isso está feito. Resultou em quatro mil vítimas a cujo destino de alguma maneira estou ligado. E resultou na destruição de parte da alma de um país, na morte, na expulsão e perseguição (até à paranóia) de milhares de portugueses. Isso não se relativiza nem se discute -- mas se alguém quer relativizar e discutir, a linha está livre. Há sempre lugar para os pobres de espírito, embora seja conveniente assinalá-los daqui em diante.
Se salvar uma pessoa é salvar todo o mundo, acender uma vela por uma das vítimas do pogrom de Lisboa é acender uma vela por todas elas. Onde quer que seja. Uns acenderão essa vela por causa da memória; outros acenderão uma vela para que a perseguição e o massacre não tenha sentido, nem hoje nem na nossa memória. Não se trata de uma peregrinação enquadrada pela política ou pela redenção da história.
Por outro lado, gostaria de deixar claro que me parece ridículo que o Estado português peça perdão pelo pogrom de 1506, pela Inquisição de Évora ou de Lisboa, pelo horror causado pelos frades dominicanos, pelos mortos que armazenou e pelo que deixou que se fizesse. As coisas estão feitas. O único perdão possível é não relativizar. A reparação é outra coisa, e só pode ser feita com o coração. Por isso, sim, eu vou acender uma vela no dia 19 de Abril. Nós vamos acender uma vela no dia 19 de Abril (no Rossio, na janela de casa, à porta da igreja de S. Domingos, na nossa rua, à porta da sinagoga, onde quisermos) e isso é uma coisa que não se discute. Que nem sequer está em discussão.
Adenda: parece que a ideia generosamente proposta pelo Nuno Guerreiro terá sido já «enquadrada» politicamente. É uma pena. Apenas espero que nenhum dos discursos nos envergonhe pela sua hipocrisia.
Textos de apoio no Rua da Judiaria.
Adenda 2: Parece que umas pobres almas, entretidas em metáforas de algibeira, se sentem instrumentalizadas com a ideia. Outras, mais do género imbecil, acham que não se justifica tanto empenho e que, enfim, é preciso «ter em conta a época». Há ocasiões em que é melhor deixá-los falar. O abjecto é sempre o abjecto.
A Origem das Espécies
We have no more beginnings. {George Steiner}
15 Comments:
Não acendi nenhuma vela aqui no Porto porque não concordo muito com este género de iniciativas, pouco enquadradas. Gostaria, isso sim, que deixassemos de uma vez por todas de branquearmos a nossa História. O cidadão comum pensa que a Inquisição é espanhola. Nós tivemos, mas pequenina, irrelevante. Pensa que a nossa colonização foi muito humanista. Selvagens foram os ingleses, os espanhois, os franceses, os holandeses, os belgas.
Mais que milhares de velas no Rossio, é urgente confrontarmo-nos todos com o passado bárbaro e sem desculpa.
Concordo!
Porém, as velas que realmente contam acendem-se na alma, na profunda indignação para com um passado destes, que tantos louvores e encómios de bravura ofuscaram.
Um abraço de um católico - por imposição do baptismo - que abomina esse passado celerado de Roma e do seu séquito.
André Moura e Cunha
As velas devem ser acendidas por Portugal, pois o massacre de Lisboa significou o começo da nossa ainda não interrompida decadência.
Pedir perdão? Não, pois não faz sentido.
Esquecer? Não, temos de ter presente que a construção da nossa pátria se faz com todos e não só com alguns, por isso devemos lembrar o que se passou em 1506, pois aí, excluiu-se uma parte do país, que para mal dos nossos pecados era um dos pilares fundamentais.
um breve pedido de esclarecimento ao "Mestre de Avis"
no ano de 1506 a Páscoa calhou em que data?
a 19 de Abril?
"isso é uma coisa que não se discute"
O Francisco José Viegas aponta boas razóes para ir. Mas a maneira como o faz é enervante! Não irei porque não estarei em Lisboa mas não sei se iria. Provavelmente, não.
A maneira como o Lutz colocou a questão foi mais lúcida que o Francisco. Já li varias posições (pró e contra) mais lucidas que a do Francisco. E concordo com o ponto de vista da maloud (que é oi mais lucido por aqui).
Eu compreendo-o: é amigo do Nuno Guerreiro e a sua posição só pode ser estas.
Mas os outros passam por "abjectos" se apresentarem razões fundamentadas para não ir?
Zazie: é provavel que sim, que o massacre tenha sido em dia de páscoa. Não sou especialista em história nem estudei pormenorizadamente esta época, mas parece-me provavel: Pascoa e Natal eram boas alturas para fazer uma "purificação" destas. :(
Sabine: desculpe, mas não entendeu. Eu disse «e não se discute» porque, na verdade, não estou na disposição de discutir com ninguém a ideia de eu acender uma vela em homenagem às vítimas do Pogrom de 1506 e da Inquisição. Não encontro argumentos que me levem a relativizar, ou seja, a discutir o assunto. Eu vou. Não obrigo ninguém a ir. Não exijo que ninguém vá. A minha decisão é puramente individual, e quando escrevo nós vamos refiro-me aos que vão e querem ir. Portanto, não estou disposto a discutir aquilo que, hoje, a minha liberdade individual e as minhas opçoes me levam a fazer.
E sim, chamo abjectas às posições, manifestadas aqui e ali, que levantam dúvidas sobre a natureza relativa do massacre. Isso é abjecto. Releva da pura ignorância e da absoluta infantilidade da sociologia de algibeira. São idiotas.
Quanto ao Lutz, ele tomará as decisões que acha melhores para ele. Eu não discuto a minha decisão. Eu vou. Entendido?
Obrigada pela resposta.
Confesso que duvidei que tivesse alterado porque, de acordo com as fontes mais próximas, sucedeu em Domingo de Pascoela, ou seja, no Domingo seguinte à Páscoa.
Não terá grande alteração no contexto mas ainda assim alguma. Uma matança da Páscoa, com 4000 vítimas iniciada simbolicamente na data da ressureição de Cristo pareceu-me a leitura mais "diabólica" que nunca ninguém se tinha atrevido a fazer.
Pelas informações existentes o principal contexto prendeu-se com o surto de peste.
Quanto ao Natal não existe qualquer informação de ter havido algum crime histórico do género, nesta época. Este mesmo tem carácter único, motivo pelo qual sempre foi difícil aos historiadores retirarem conclusões de sintomas ou antecedentes que lhe pudessem ser associados com rigor.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Quanto às razões para ir ou não ir já fiz esclarecimento no Cocanha. Nunca me intrometeria nisso como nunca analisaria sentimentos.
Devo, no entanto, dizer com toda a franqueza que não levei a "convocatória" a sério.
Quatro mil velas anunciadas apenas num espaço restrito da blogosfera, sem que a própria Comunidade Judaica o tivesse mencionado, pareceu-me acontecimento totalmente irreal para ser realizado.
Razão porque me pareceu particularmente "bonito" o apelo que o Vasco do Memória Inventada lançou em complemento.
Foi o único, a todos os títulos, inteligente e sensível para ser deixado aqui entre bloggers e leitores de blogues
Já agora, fiquem a saber que no próximo dia 28, pelas 17h, terá lugar uma reconstituição histórica do massacre judaico de 1506, no Largo de S. Domingos, a pretexto do lançamento do 1º volume (de 3) da obra "Portugal e os Judeus", de Jorge Martins, a editar pela Nova Vega. Se concorda com a evocação, convide os seus amigos, se não concorda, convide os seus inimigos.
A Paixão de Israel
Como Cidadão do Mundo, e, particularmente, como exilado interno lusitano, venho, através deste texto, associar este blogue a um dos momentos mais negros da nossa História Nacional.
Como está largamente documentado na Rua da Judiaria, celebram-se, no dia 19 de Abril, os 500 anos do infame massacre perpetrado pelos nossos antepassados sobre os antepassados dos nossos concidadãos de credo judaico. Um pouco por todo o lado se pede que nos associemos, e nesse dia acendamos, no Rossio, uma vela evocativa. Contudo, mais importante do que essa vela, convém que saibamos reacender a vela de uma memória interior.
Não me vou ater aqui a pormenores históricos, estão devida, e lapidarmente, descritos na Rua da Judiaria: em 1506, terão, por alto, sido chacinados e queimados vivos cerca de 4 000 dos nossos compatriotas, mais do que compatriotas, vizinhos de Lisboa, tão-só por uma diferença de credo, algumas referências de texto, e diferentes denominações daquele deus único dos 3 Monoteísmos.
Quando me falam de Judeus, de Cristãos e de Muçulmanos, imediatamente me acorre à ideia o Califado de Córdoba, onde, nos tempos intermédios da Reconquista, essas três religiões se uniram, para dar lugar a uma das mais espantosas florações culturais da Península, onde os pensares eram comuns, as sinagogas moçárabes, os príncipes cristãos versados nas línguas mouras, o filosofar árabe assimilado por todas as teologias, e as Igrejas de Cristo um lugar de cultos partilhados. Tudo o resto foi, depois, uma mera sombra cultural.
Portugal, país ingrato, mostrou-se sempre exímio em mutilar as suas melhores cabeças: num tempo de acolhimento, começou por juntar os restos dos perseguidos Templários com o ancestral Saber Judeu. Daí terá resultado a nossa única epopeia, a dos Descobrimentos, até que príncipes mal aconselhados, ao sabor das conveniências, resolveram substituir a Convivência pela Intolerância, obrigando ao exílio, à mentira da pele de uma religião forçada (o que é um cristão-novo, senão mais uma alma humilhada?...), e, por fim, a essa indesculpável hecatombe, iniciada em 19 de Abril de 1506.
Toda a nossa épica sucumbe nessa forçada Segunda Diáspora, onde as melhores mentes judaicas acabaram por levar o seu saber para as terras da tolerante Holanda, tornando-a na nova potência, que rapidamente substituiu o soçobrado Império Português.
Faz parte da cruz judaica a régua de dois saberes: 1) a de que mais tarde, ou mais cedo, ele será perseguido; 2) a de que, posto que essa perseguição inexoravelmente virá, lhe convém estar, ao máximo, preparado para ela. Isto gerou Judeus ricos, e Judeus sábios, e à volta disto, semeou-se sempre uma infindável história de mal disfarçadas invejas.
Quando ligo a televisão, tudo o que sinto de repulsa pelo presente xadrez de ódios do Próximo e do Médio Oriente consegue estender-se até esse dia de há 500 anos atrás. Dir-se-á que estão distantes, e que são povos que nos são quase alheios; todavia para quem invoca, repetidamente, o lema do país dos brandos costumes, relembro que esses bárbaros de há meio milénio atrás, também foram nossos antepassados, ou, por palavras outras, para que conste, que todos nós, Portugueses de hoje, deles descendemos, e descendemos em linha directa de culpa.
Como tantos, não conhecia a história do massacre de lisboa de 1506. Um episódio negro do nosso passado colectivo que é necessário lembrar e ensinar, porque a memória deve servir para educar as consciências.
Felicito a clareza do post de FJV, que com uma lucidez determinada nos faz ver que à valores que não se discutem, que a melhor forma de lidar com certo tipo de ignorância e preconceito é separar bem as águas.
Ainda bem que há factos que podem ser avaliados de forma desassombradamente simples, mesmo sendo necessário salientá-los para que os "abjectos" não proliferem.
Tenho pena de quem não possa entender que lembrar um massacre passado há 500 anos em Lisboa sobre uma minoria religiosa e cultural, neste caso os cristãos-novos, é uma forma de mostrar a nosso repúdio para todos os actos hediondos cometidos em nome da raça, religião ou cultura, dito de outro modo,uma afirmação silenciosa que rejeita todo o tipo de intolerãncia e violencia, infelizmente visível ainda hoje em tantos cantos do mundo.
Por isso a minha voz, no momento em que cada voz é importante para abraçar os valores humanistas.
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