27 dezembro, 2005

||| Balanço, 8.
Eu gostava daquele ar. Na altura trabalhava num restaurante e, por isso, como tinha de ir preparar o dia bem cedo, chegava à faculdade antes da hora. Tinha uma Renault 4. Por volta das oito e meia da manhã sentava-me à espera dos frequentadores de Literatura Brasileira; éramos apenas seis ou sete, não sabíamos nada de Anchieta, do Boca do Inferno, de Gândavo, de Olavo Bilac, de Castro Alves, da abertura quase sinfónica de Os Sertões, com aquela descrição brutal da geografia brasileira. Nem de Aluísio de Azevedo ou dos mineiros obscuros, da galeria de gaúchos que falavam das neblinas do pampa e da convulsão farroupilha. Nem dos modernistas e antropófagos (Oswald de Andrade sim, que devorara Isadora Duncan -- o seu tio, trinta anos antes, tinha atirado ao chão de São Paulo a capa de estudante de Direito para que Sarah Bernhard passasse por cima, o que mereceu o escárnio de Eça). Tínhamos alguma aversão por Jorge Amado, certamente justificada mas injusta. O máximo que as meninas tinham lido era O Meu Pé de Laranja-Lima. Rubem Fonseca seria publicado em Portugal apenas dois anos depois (Feliz Ano Novo). Mário António, o poeta angolano que fora meteorologista, ensinava literatura brasileira com ironia: «Tenho uma má notícia», anunciou na primeira aula. «A literatura brasileira é muito melhor do que a portuguesa.» Houve algum escândalo nas cadeiras enquanto ele se voltava para o quadro, sorrindo e escrevendo quatro versos de Castro Alves. Mário António trabalhava também na Gulbenkian, a dois passos, e chegava antes. Um dia de Março, aquele sol a bater nas derradeiras buganvílias da faculdade (seriam arrancadas), emprestou-me o jornal e disse: «Parece de Bertioga, esta luz.» Só compreenderia isso dez anos depois, mais ou menos, quando cheguei a Bertioga ao princípio da manhã, vindo do outro lado, de Santos. E lembrei-me dos versos de Castro Alves, que, como acontece com quase todos os versos, não tinham nada a ver com isso.

2 Comments:

Blogger JV Nande said...

Que belíssima série de posts, Francisco.

2:12 da manhã  
Blogger Saint-Clair Stockler said...

Não estou bem seguro de que seu professor esteja certo em relação à poesia brasileira (sobretudo a partir da segunda metade do século passado), mas seu post é muito belo e evocador.

3:08 da manhã  

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