22 novembro, 2005

||| Romance histórico, 1.
























Mais romance histórico nos últimos tempos. Depois de A Casa do Pó e de A Esmeralda Partida (e de outros, como A Sala das Perguntas ou O Prisioneiro da Torre Velha), Fernando Campos escreve o mais fascinante de todos os seus livros, O Cavaleiro da Águia (todos publicados pela Difel): poucas vezes um romance histórico português usa uma linguagem tão comovente, se perde e se deixa seduzir pela poesia. Campos é um mestre do romance histórico que passa em silêncio, sem muito ruído. Os seus personagens (Frei Pantaleão de Aveiro no primeiro, depois D. João II, Damião de Góis, D. Francisco Manuel de Melo e finalmente Gonçalo Mendes -- o da Maia) são estudados em pormenor, erguem-se sobre os destroços do tempo mas arrastam-no como uma maldição. O Cavaleiro da Águia é, nessa medida, a tentativa de fazer um romance histórico sem culpa, e onde a linguagem dissimula a dificuldade de dizer o que quer dizer (que não há bravos cristãos nem mouros a abater) -- mas o resultado é, tal como a sua linguagem, comovente, sim. Depois, há algumas surpresas, como A Lenda de Martim Regos, de Pedro Canais (Oficina do Livro), uma boa revelação através de um personagem que quase é o primeiro herói multicultural português, atravessando o cristianismo, o judaísmo e o islão. A ideia pode parecer muito politicamente correcta, mas Pedro Canais não cai no erro: Martim Regos não é levado no seu destino para cumprir uma busca cultural mas para percorrer o mapa do seu mundo, à solta, cheio de curiosidade e de excitação. Outra revelação é a de Pedro Almeida Vieira, que já tinha escrito Nove Mil Passos (sobre a construção do Aqueduto das Águas Livres); agora, é O Profeta do Castigo Divino, com algumas figuras centrais -- a do padre Gabriel Malagrida, a do Marquês de Pombal, a Igreja, os jesuítas, e o narrador do seu livro, o diabo, propriamente dito. Muitas vezes o peso da história esmaga o romance, mas isso tem uma vantagem: Pedro Almeida Vieira faz uma investigação muito minuciosa, cheia de deleites, de pormenores e de horrores, mas transmitindo o retrato de uma mentalidade brutal e do medo setecentista. Outro olhar é o de Miguel Real, que é um autor subvalorizado. Ele escreveu uma história extraordinária em redor de Branca Dias (Memórias de Branca Dias, Temas e Debates), a primeira mulher a praticar judaísmo em terras do Brasil, no Pernambuco. Mais do que isso, antecipando debates que seriam centrais no judaísmo reformista, a ser a primeira rabina portuguesa; o mundo do Pernambuco não escaparia ao longo braço da Inquisição e Branca Dias seria queimada, mas os judeus do Recife iriam para Nova Amesterdão, reencontrando-se com os judeus portugueses expulsos dois séculos antes, e entraram na fundação de Nova Iorque depois de terem fundado a primeira sinagoga das Américas, a Beit Israel, recentemente recuperada no Recife. Em A Voz da Terra, o seu novo romance (edição Quid Novi, a sair) Miguel Real formula uma história mental do terramoto de Lisboa, opondo a voz da terra à voz do céu, numa linguagem tão desprendida quanto é certo que a escreveu fora das bibliotecas: o Marquês de Pombal revisitado, a complexidade e a turbulência da guerra com o divino, a crueldade, o desvario. É um grande romance.
Não cabe neste domínio de romance histórico, mas sinto alguma perplexidade ao ler o Codex 632, de José Rodrigues dos Santos (edição Gradiva), onde se desenvolve a teoria da identidade portuguesa de Colombo. Há alguma semelhança com Anjos e Demónios, de Dan Brown (o investigador português Tomás Noronha é levado para NY tal como Langdon foi transportado para a Suíça), e com a catadupa de revelações em catadupa de O Código Da Vinci, mas existe a coragem de lidar com o problema de Colombo. Sinceramente, acho que o livro terá algum sucesso quando for traduzido para inglês (um editor americano já comprou os direitos). Tem coisas muito infantis (como as descrições brasileiras, por exemplo, um pecado mortal português quando se trata de escrever sobre Ipanema e adjacências), e a tentação de serviço público quando se trata de explicar conceitos e factos históricos, mas esse é um pormenor que lhe trará popularidade, não nego.
Não me posso esquecer de coisas curiosas, como o caso de José Manuel Saraiva, Rosa Brava (Oficina do Livro) sobre D. Fernando e Leonor Teles, onde há pela primeira vez sexo a valer na casa real portuguesa, com o rei exercitando-se em cunilingus ou sexo anal, e desviando-se dos perigosos caminhos do incesto. Leonor Teles é uma explosão na corte lisboeta, mas ainda não tinha merecido atenção de muita gente.

3 Comments:

Blogger sabine said...

Parabens pelo blogue! Houve uma época - no final do Aviz - em que já ão suportava lê-lo. Voltou com o espírito mais aberto e textos mais interessantes.

8:24 da tarde  
Blogger Rui Afonso said...

Alguns já li, com especial destaque para o Cavaleiro da Águia. Fernando Campos, de facto, no seu melhor.
Os outros, ficam para breve. Obrigado pela sugestão.

3:49 da manhã  
Blogger Carrie said...

O peso da História n'O Profeta do Castigo Divino é na minha opinião, que ainda vou nas primeiras páginas, excessivo. O Nove Mil Passos conta toda a estória com o devido enquadramento histórico sem cair no exagero de longas citações textuais de obras da época, como acontece no novo título. Pode ser que mais para a frente a escrita do Pedro Almeida Vieira se torne mais escorreita e humorística, ao estilo do 'Nove mil passos', que é (na minha modesta opinião) um dos livros de 2005.

1:04 da manhã  

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