28 outubro, 2005

||| Soma & aritmética.
A ideia de que a soma dos votos da esquerda em Fevereiro (ou nas autárquicas) deve ser distribuída por todos os candidatos de esquerda, depara com um problema básico: as eleições presidenciais são outra coisa. A maioria sociológica que deu a vitória a Sócrates em Fevereiro (contra o PSD velhaco e a enorme quantidade de trapalhadas da época) não votou na denominação e na cartilha da esquerda tradicional.
O que mudou nos últimos anos portugueses não foi a correlação de forças entre a “esquerda” e a “direita” clássicas (visível através da “alternância democrática”), entre o PS e o PSD, mas a ideia de que existem outras coisas para lá dessa arena – outros valores, outras exigências (de natureza cultural – sobre a vida, sobre o carácter dos políticos e o seu comportamento, sobre o peso e os negócios do Estado) e, sobretudo, uma outra ideia acerca do que deve ou pode ser o país.
Por isso, a 20 de Fevereiro, os eleitores acharam que o aparelho de Estado devia ser uma coisa séria. Não se aceita um governo para ele pôr a casa em pantanas – mas para que a arrume, para que discipline as suas regras de funcionamento, para que proceda às reformas essenciais. Não para fazer reformas só porque os cavalheiros do costume exigem reformas e convulsões, que normalmente acarretam mais despesa.
Mais: a vitória de Sócrates (desenhada brilhantemente por uma campanha de marketing da LPM) foi a vitória do modelo do homem normal. Ou seja, que as pessoas queriam uma vida normal. Uma vida normal é uma coisa simples - professores colocados a horas, ordem nas ruas, telenovela antes e depois do telejornal, futebol ao fim-de-semana, juros baixos, telemóveis baratos e férias no Algarve. Não são precisas nem muita sensibilidade política nem muita perspicácia de sociólogo para compreender esse desejo de mediocridade. Há um lado da democracia que se deixa fascinar por esse desejo de mediocridade simpática - é necessário compreendê-lo. Com isso se ganham eleições e se seguram governos. Sócrates soube ver isso, ou alguém lho fez ver. Mesmo que o resultado (ou as consequências) seja diferente.
Por isso, confundir a vitória do PS em Fevereiro com a vitória em toda a linha da esquerda tradicional, parece-me um erro de cálculo.

Ver, também, o post de João Gonçalves.