16 dezembro, 2005

||| A tragédia.
O discurso de Mário Soares aproxima-se, finalmente, da dramatização. A sua guerra pessoal contra Cavaco transformou-se, aos poucos, numa coisa doentia, recorrente, repetitiva, monótona e desagradável. Mais do que isso, com aquela marca de ressentimento que vem sempre colada ao anúncio das tragédias (e que esteve prestes a anunciar no debate com Manuel Alegre). Na entrevista de ontem na Antena Um, Soares repetiu a expressão «seria uma tragédia», quer em relação a assuntos europeus, quer, no fundo, em relação à eleição de Cavaco. Essa ideia de «seria uma tragédia» («seria uma tragédia» não ser eleito), de qualquer modo, vai tendo teve inflexões e desmentidos (Cavaco, afinal, já não é um papão apesar de lhe poder vir a tirar o sono) porque não é possível mantê-la em regime permanente. O que a candidatura de Cavaco (para temor de soaristas e de cavaquistas) vem fazer, no fundo, independentemente de si mesmo, é interromper um ciclo conservador onde o republicanismo se sobrepõe aos valores republicanos.
Por outro lado, a ideia de tragédia na política é sempre populista; a sua dramatização assenta em coisas vagas, num discurso sem referente. Na verdade, Cavaco, o gajo, é uma peça menor neste tabuleiro -- o que assusta, agora, é o fim do ciclo político em que não se podia questionar o seu lugar sacerdotal (daí o seu despeito em relação a Alegre, a quem acusa de estar impreparado -- como se a única preparação para exercer o cargo viesse do facto de o ter já exercido, o que resultaria numa espécie de casta republicana que só viveria na sua órbita). Até em coisas banais Soares deixa esse sinal, repetindo nos debates e entrevistas a expressão «não é disso que eu quero falar» ou «eu quero falar é de».
Esta campanha veio trazer um Soares que não merecia ser visto desta maneira, dada a sua importância para o quadro geral da República: obrigado a desmentir-se a si mesmo (em relação a Sócrates, que odiava; em relação à qualidade dos políticos; em relação a África; em relação a Guterres, sobre quem diz coisas ditirâmbicas, a propósito da «estratégia de Lisboa»; em relação ao PS), a falar do que não quer e do que o enfastia, defendido por Jorge Coelho com a ideia absurda da desistência dos outros candidatos de esquerda. Mas a procissão de coisas absurdas vai continuar.

Adenda: Jorge Coelho retirou o apelo à desistência das outras candidaturas. «Mas o aviso ficou registado.» Estas declarações são o reinício da dramatização.

6 Comments:

Blogger Sarrafeiro said...

É total a desilusão que sinto em relação ao MS. Fez-me repensar sobre os motivos que me levaram a votar nele..nas anteriores eleições.
O pior é que deixa descendente que, como quase todos, é pior do que o original.
No debate com o manuel alegre, senti um forte sentimento de solidariedade por ele, o manel. Senti que em alguns momentos ele esteve preste a explodir, em desmascarar o marocas...não o fez por despeito, por amizade e quiçá por vergonha.
O manuel alegre representa, colectiva e particularmente, a inércia da esquerda: é poeta e idealista sem fim...e é um sonhador irreal porque nunca realizou nada.

2:09 da manhã  
Blogger António Luís said...

Subscrevo o texto e o comentário do Sarrafeiro...
O problema é que muita gente não quer ver o que é óbvio e Soares, por isso, parece pairar por cima de tudo isto, sem uma beliscadura.

Cumprimentos.
A. Luís

11:55 da manhã  
Blogger Torquato da Luz said...

Coelho, Vitorino e Costa tentam, a todo o custo, evitar a "tragédia" que será, para o PS e sobretudo para eles, um "score" eleitoral de Alegre superior ao de Soares.
Mas, entre a curiosidade e o divertimento, a maioria dos portugueses não quer é perder o espectáculo das consequências de tal "tragédia", bem como as posteriores piruetas dos referidos cérebros.
Parafraseando Coelho, "vocês hadem ver"...

5:20 da tarde  
Blogger Nancy Brown said...

A candidatura de Soares poderá vir a tornar-se num "case study", enquanto tal não acontece vamos tristemente observando a queda de um mito político. Os "mitos" também de abatem...

7:07 da tarde  
Blogger NUNO FERREIRA said...

Esperem pelo futuro radioso e os amanhãs que cantam do Dr Cavaco

12:57 da manhã  
Blogger António Viriato said...

Parabéns, ainda que atrasados.Infelizmente,vêem-se poucas figuras dos meios culturais, mediáticos, capazes de perderem o venerando temor de criticarem as imensas vulnerabilidades de Mário Soares e de toda a sua prosápia pretensamente intelectual.Dir-se-ia que estão todos sob estipêndio régio, obsequiosos e agradecidos, felizes com as migalhas que lhe conseguem subtrair. Não é, felizmente, o seu caso. Ainda bem.

1:18 da manhã  

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